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Juizes no banco dos réus?

No dia 19 de abril de 2017, o Senador Roberto Requião apresentou à Comissão de Constituição e Justiça do Senado o seu Parecer com substitutivo ao chamado Projeto do Abuso de Autoridade. Depois de uma sessão pública realizada no Plenário do Senado em dezembro de 2016, de que também participaram o Juiz Federal Sérgio Moro e o Ministro do STF Gilmar Mendes, ficou o Senador Requião incumbido da tarefa de elaborar um parecer sobre o projeto apresentado pelo Senador Renan Calheiros, que encontrou grande resistência da parte de magistrados, promotores e da própria sociedade. O Projeto do Senador Renan era uma nítida reação à operação Lava-Jato, visto como uma tentativa de retaliação contra magistrados e procuradores.

A sessão pública do Senado aconteceu no dia 1º de dezembro de 2016, no mesmo dia em que o Senador Renan Calheiros se tornou, pela primeira vez, réu em ação penal no Supremo Tribunal Federal. Numa sessão no mínimo tensa, a intervenção do Senador Requião naquela oportunidade foi com palavras mais amenas, quase conciliatórias, gerando alguma esperança de que traria algo mais razoável do que a proposta de Renan. O próprio Ministro Gilmar Mendes, em sua fala na sessão, defendeu o Projeto do Senador Renan, mas com a ressalva de que não se tratava de uma proposta de criação de crimes de hermenêutica. Apontando para lamentáveis casos de presos provisórios há mais de dez anos no país, disse, na ocasião, que o projeto precisava ser aprimorado, mas que “o propósito não é criminalizar a atividade dos juízes e promotores”.

“O Parecer apresentado à CCJ pelo Senador Requião é uma afronta à República, um grave atentado à sociedade brasileira e ao próprio Estado de Direito.”

Entretanto, não é o que está acontecendo. O Parecer apresentado à CCJ pelo Senador Requião é uma afronta à República, um grave atentado à sociedade brasileira e ao próprio Estado de Direito. Numa evidente tentativa de amedrontar juízes e procuradores, propõe a criação de vários tipos criminosos contra magistrados e membros do Ministério Público. Criminaliza explicitamente a função jurisdicional. Tratado como urgente, sua votação está para acontecer nos próximos dias.

O Projeto prevê situações como a seguinte. Um preso perigoso, membro de uma organização criminosa com armas e poder econômico, chega para ser interrogado numa Comarca do interior. Por razões de segurança, o juiz entende que o mesmo deve permanecer algemado, para evitar fuga e também para preservar a integridade das pessoas presentes. É preciso dizer que não são poucas as cidades do interior do Brasil em que os integrantes de organizações criminosas superam o efetivo das forças policias, e detêm armamentos muito mais potentes. Raros são os fóruns em que há detector de metais e vidros blindados. Há poucos anos, numa cidade do interior da Bahia, ficou famoso o caso de uma delegacia que foi invadida por bandidos, que com facilidade soltaram os seus comparsas. Os policiais não reagiram porque não havia condição, pois os criminosos portavam armas de grosso calibre. Depois da fuga, os criminosos ainda desfilaram pelas ruas da cidade efetuando disparos para o alto, com a guarnição policial desmoralizada à sua frente.

O juiz então realiza a audiência, o preso é ouvido sem contratempos, seus direitos a ampla defesa e contraditório restam totalmente preservados. Aparentemente, tudo correu de maneira tranquila, de acordo com a Constituição e as leis do país. Tudo bem? Não.

O preso, então, contrariado pela manutenção da sua custódia, resolve contratar advogados para mover uma ação contra o juiz. Dinheiro não falta às organizações criminosas em atuação no Brasil. E o juiz, pelo simples fato de ter decidido realizar a audiência com o preso algemado, movido, lembre-se, pelo sentimento de preservar a integridade das pessoas presentes e para evitar fuga, então passa a ser ele, o próprio juiz, réu numa ação penal, podendo vir a ser condenado a quatro anos de prisão, pagamento de multa e indenização, e perda do cargo. Tudo de acordo com o artigo 17 do Projeto em via de votação no Senado.

Os descompassos do Projeto de Lei não param por aí. Digamos que um juiz decretou a prisão de um criminoso perigoso. O sujeito foi encontrado tarde da noite, na zona rural de uma cidade do interior, portando armas de uso restrito, muita munição, e transportando mercadorias contrabandeadas. O juiz verifica os requisitos da lei e decreta a custódia cautelar do sujeito. Assim o fazendo, de acordo com a proposta, o juiz pode vir a ser condenado a quatro anos de prisão, multa, indenização e perda do cargo (artigo 9º do Projeto). Basta que um órgão judiciário em grau de recurso entenda que houve “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Mas será mesmo possível estabelecer, com a segurança necessária para fundamentar uma decisão judicial condenatória em ação penal, uma única interpretação possível para a cláusula “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”?

Disso fica claro que o Projeto de Abuso de Autoridade em trâmite no Senado cria os chamados crimes de hermenêutica, hipóteses espúrias da lei penal, próprias de regimes corruptos e ditatoriais, em que o juiz pode vir a ser condenado pelo regular exercício de sua função jurisdicional. A interpretação do juiz passa a ser criminalizada. Se o juiz não agir de acordo com a interpretação das instâncias superiores, está fadado à persecução criminal. Dependendo da sua interpretação, poderá ir para a mesma penitenciária onde estão os criminosos que condenou.

Note-se que o Projeto do Senador Requião coloca os juízes numa situação muito mais difícil do que se imagina. As hipóteses de decretação de prisão no Brasil, por exemplo, são interpretadas a partir de leis editadas em diferentes momentos da história política e legislativa brasileira. Resultam, em muitos casos, da interpretação conjunta de artigos de Decretos-Lei e Leis das décadas de 1940 (Código Penal, de 1940, e Código de Processo Penal, de 1941), 1980 (Lei nº 7.960, de 1989) e de anos mais recentes. Nem os Tribunais Superiores conseguem fixar com facilidade uma interpretação uniforme. E como é possível, então, aos juízes de primeira instância serem responsabilizados dessa forma? Responderem criminalmente por algo que nem os Tribunais Superiores, bem estruturados fisicamente e com pessoal qualificado em suas sedes na Capital da República, conseguem fazê-lo?

Ressalte-se um outro aspecto. No Brasil, muitos membros de Tribunais Superiores nunca passaram em concurso para juiz, e por isso jamais exerceram a jurisdição de primeiro grau. Para ser ministro do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, a Constituição exige “notável saber jurídico e reputação ilibada” (artigo 101); não é exigida vivência na magistratura, algo precioso para quem veste uma toga. Por isso, são muitas vezes políticos ou advogados que já entraram no Poder Judiciário nas altas funções de Desembargador ou Ministro. Não conhecem, assim, a realidade dos juízes brasileiros, principalmente das cidades do interior. Não viveram a magistratura nas entrâncias. E são eles que irão dar a palavra final sobre uma eventual condenação do juiz que, naquela tarde quente do sertão, com apenas um vigilante desarmado na porta do fórum, decidiu manter o preso algemado para o bem e segurança de todos.

O Substitutivo apresentado também permite, em seu artigo 27, que os juízes sejam condenados a dois anos de prisão, multa, pagamento de indenização e perda do cargo, na hipótese de decidirem pela abertura de uma investigação criminal. Funciona mais ou menos assim. O Ministério Público promove uma ação contra uma Prefeitura ou um político do interior, após a realização de uma investigação preliminar. Digamos que há uma forte suspeita de desvio de verbas de merenda escolar. As provas ainda não são suficientes para uma condenação, mas há indícios concretos da prática de crime. O normal nesses casos é o juiz autorizar a abertura do processo com base em provas preliminares, e ao final decidir se é o caso de condenação ou não. Mas de acordo com a proposta, se o juiz autorizar a instauração da ação, e ao final não for o caso de condenação, terá praticado crime. Responde com prisão, financeiramente e com a perda do cargo.

Um exemplo para que fique ainda mais claro. Desde 1941, o Código Penal estabelece o crime de aborto. O STF e todos os tribunais brasileiros sempre consideraram regular a vigência dos artigos 124 a 127, e determinaram a abertura de inúmeras investigações e o processamento de milhares de ações penais durante quase 76 anos. Em novembro de 2016, a Primeira Turma do STF mudou o seu entendimento histórico, considerando que não há crime quando o aborto é praticado até o terceiro mês de gestação. Assim, caso o Projeto de Abuso de Autoridade fosse aprovado, milhares de juízes no Brasil teriam, em tese, praticado crime, porque autorizaram a abertura de investigações criminais. Ou seja, as mudanças na jurisprudência podem a qualquer momento criminalizar a conduta dos juízes. Isso é crime de hermenêutica.

E registre-se que, em todos esses casos, os próprios investigados podem promover a ação penal contra os juízes, numa absurda inversão das posições da função estatal de segurança pública e persecução penal. De acordo com a proposta, os juízes passam a ocupar o banco dos réus numa espécie de golpe técnico-jurídico promovido pelos criminosos, que passam pela proposta a ter o apoio da lei em seu favor, tudo de acordo com o Projeto apresentado para supostamente combater o abuso de autoridade no país. O detalhe é que juízes e procuradores, na lógica do projeto, figuram como os culpados pelo abuso de autoridade no Brasil, exatamente o oposto do que as grandes operações em curso estão mostrando para toda a sociedade.

Um dos principais problemas da atualidade é a inversão de valores. Todos os dias ouvimos pessoas repetindo isso nas ruas e mesas de audiência. É preciso recuperar a integridade e coerência da vida pública.

E, neste sentido, um país que busca encontrar o seu caminho de legalidade e moralidade não pode pretender castigar os seus juízes, promotores de justiça e procuradores, por cumprirem a sua missão. A proposta criminaliza o dia-a-dia dos juízes e membros do Ministério Público, retira-lhes a sua imparcialidade, golpeia as suas garantias, que não são suas, mas da própria sociedade. Há uma nítida intenção de amedrontar os juízes no Brasil. E a que grupos de pessoas isso interessa?

Querer combater o abuso de autoridade sufocando a atuação de juízes e procuradores é inverter valores altos da sociedade brasileira, criminalizando aqueles que, com o seu trabalho, têm contribuído para um Brasil melhor para todas as pessoas. O momento é de certidão. De fazer as coisas da maneira certa, correta. E a oportunidade é para todos, até mesmo para aqueles que queiram assumir a sua responsabilidade pelos erros praticados e recomeçar uma vida de acordo com a lei e a justiça.

Leonardo Tocchetto Pauperio é Presidente da Associação dos Juízes Federais da Primeira Região

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